sexta-feira, 5 de outubro de 2012

BEBÊ



Bebê
Nívea Moraes Marques

Leque vem e faz uma ventania de letras
grudando saliva e sílabas no céu da minha boca
com elas construo barquinhos navegáveis
no estreito embandeirado dos dentes da minha boca
é que no fundo oco do que penso ser a caixa do meu sustento
há as pernas suntuosas do jogador, de chuteiras e meião
às tardes sempre sonoras e cobiçosas de amigos
a gente inventa tapete de grama boa
e rola com bola com chuteira
com suor novo de pele limpa
curtindo com a cara suja
desse povo que é dono do tempo
inventores de paralelepípedos
onde a gente subisse
degrau por degrau
na ascendente
como uma vida crescendo
de um futuro rítmico que voa
mas a gente rola feito bola
descendo descendo descendendo
como um eterno bebê...

domingo, 18 de março de 2012

DANÇAR ATÉ ESTRAGAR



No mistério da vida da bailarina
Uma caixinha guardada no fundo:
Seu coração delicado
(tracionado pela dança
Tracejado pela dor
Perdido e encontrado
de amores
Ainda uma vez perdido no fundo
só sabe uma coisa:
(acionado pela corda)
Dançar até estragar

...Nívea...

BAILARININHA BEBÊ



Um doce de bombocado
finge exercitar-se borboleta
Ela rabisca meus sóis de azul
Nessa festa bailarina
Reinado cujos laços e pedras
da cor-de-rosa
confirmam a beleza da sina-menina

...Nívea...

DUAS BAILARININHAS


A elegância da dança
Não pode mais do que quem pode tanto
Duas bailarininhas se conformam
E se ajeitam dentro das quatro
Linhas
Alinhavadas de cor
...Nívea...

domingo, 11 de março de 2012

ESTRELA DAS ÁGUAS

Estrela das Águas
Nìvea Moraes Marques


Quando a índia Naiá encompridava os olhos
pro lado da lua, guerreiro prateado chamado Jaci,
ninguém pensava que ela um dia teria coragem
de tocá-lo.
Enganada pelo reflexo da lua no rio,
mergulhou nossa índia para o fundo, num abraço fatal
e a lua, guerreiro distante, no momento em que
viu a cena, ficou tão comovido que aceitou o pedido
a fez emergir como uma gigantesca flor
Vitória-régia do amor sobre a morte
Toda noite no leito do rio
a lua estende seu brilho sobre Naiá
que ganhou aliança e mudou de nome
agora casada virou Estrela das Águas.

O CORAÇÃO DE JESUS

O coração de Jesus
Nívea Moraes Marques



O coração de Jesus tem uma porta
que abre pra dentro de mim

Faz uma ponte sobre a baía
Eu do lado de cá, Ele do lado de lá

Canto minhas orações em voz baixa
E Ele se aproxima

Canto minhas orações em voz mais baixa
E Ele se aproxima um pouco mais

Canto minhas orações sem voz
E Ele cola o ouvido nos meus lábios
e passa a cantar, orando por mim.

SÍTIO

Sítio
Nívea Moraes Marques


No meio de uma graminha rasteira
Há uma casa amarela com as tintas descascadas
No quintal umas galinhas de penas branquinhas
Uma horta verdinha com temperos cheirosos pra sopa
Perto do céu, as montanhas ondulam e formam a serra
A passarada com seu canto bonito dá sinal nas tardes de sol quente
Os meninos pescam e nadam num riacho limpo com pedrinhas no fundo
O vovô e a vovó escutam a ave-maria no rádio
E o sono chega mais cedo, quando a lua e a viola ditam as modas dos sonhos
que a gente vai ter.

CARRINHO DE EMPURRAR

Carrinho de empurrar
Nìvea Moraes Marques



Todo menino tem um carrinho de empurrar.

Amarra uma cordinha no parachoque e sai por aí
puxando seu carrinho de estimação

O carrinho está protegido até da enxurrada da chuva,
quando ele começa a se afogar é só levantar a cordinha e pronto
içar o carrinho e depois deixar o sol fazer o trabalho de recuperação.

Todo menino tem um carrinho de empurrar,
com um assovio imita o som da buzina,
com os pés imita o freio
já as rodas, levam o menino e o carrinho
pra onde a imaginação puder abrir uma estradinha.

FLOR MARAVILHA

Flor maravilha
Nívea Moraes Marques


Pétala à pétala
da cor maravilha
presa à menina,
em seus cabelos

Fosse como estrela
ou costura da avó

a flor maravilha
enfeita a menina
e é quase um encanto de bruxa
e é quase uma bênção do Céu

É na verdade um mimo natural
com caule, seiva e pistilo
dormindo nos cabelos dela
como neném dentro do berço

MARINADO

Marinado
Nívea Moraes Marques



No fundo do mar habitam peixes
que pescados
enfeitam meu prato de gostos verdes e cores salobras
do fundo do mar

Sal e areia misturam-se ao arroz branco
provo o mar, aos pedaços,
como se fosse um doce fino
como se fosse um menino fino
como se fosse um pássaro marinho

como se recolhesse do oceano um gosto por navegar.

CONTOS DE FADAS

Contos de fadas
Nívea Moraes Marques


Aonde termina um final feliz
de conto de fadas?

Será que a princesa engorda e enruga?
Será que o príncipe entorta a coluna?
Será que o cavalo é o último do páreo?
Ou será que seus filhos lhe incutem grilos?

Não, nada disso:
A princesa meias tece
O príncipe escreve ditos
O cavalo trança a crina
E as crianças a pipa empinam

Não, nada do que se pensa:
A princesa ensaia teatro
O príncipe compra quadros
O cavalo pasta ao vento
E as crianças tomam tento

Mas, aonde mesmo termina um final feliz
de conto de fadas?

Termina mesmo num longo beijo, e num para sempre
sem retaguardas...!

MELÃO, PAPELÃO, C...

Melão, papelão, c...
Nívea Moraes Marques



“O segredo só pedia
que brincassem todo dia,
a alegria era corda
pro brinquedo funcionar.”
gil veloso


Fiz um brinquedo novo
Um brinquedo-dia
Enchi de palavras
As suas frestas
E apertei as porcas
Com música de cordas
Fiz um brinquedo
Que pulsa
Que chora que pede que dorme e acorda
Mas nunca para
Meu brinquedo de menina e menino
Finge que entende as minhas ordens
As minhas broncas, os meus mulambos
Mas ele rola e grita e sorri
Quando e onde ele quer
Meu brinquedo tem casa de carne
E eriça os pelos no vento
Meu brinquedo poderia ser um cãozinho ou um periquito
Mas é tão junto comigo
Que só vivo se ele vive
E ele só vive dentro de mim
Meu brinquedo é ave e não voa
É relógio e não marca
É bomba e não pode explodir
Faço papel de embrulho para guardá-lo sempre novinho
Mas ele envelhece comigo
Teimamos cuidado um com o outro
E temos inquilinos comuns
Não há preço pro meu brinquedo
E não apresso o meu brinquedo
Ele é mais sábio que eu
Eu sou mais sabido que ele
Meu brinquedo bate incessantemente
As palmas pro meu sucesso
Em segredo lhe dou nomes
Próprios
Mas atende mesmo por melão papelão (coração...)

A LUA DE GUIGUI

Mora na Lua
Nívea Moraes Marques

Na lua de Guigui mora um lobo de boca aberta.
Na lua dos meninos de ontem era São Jorge que morava, montado em seu cavalo a vagar pela vastidão da noite.
Guigui se esconde da lua, mas seu irmão, Capitão de laços e espada, o protege da mordida do lobo.
Quando a lua está minguante, o lobo apenas balança a cauda, sem dentes. Como se fosse pedaço de nuvem ou pelo branco de Rusk, a Sibéria num mundo quente, derrete. Derretendo os medos do pequeno Gui.
Mas se engorda a lua, vem a matilha uivando pra dentro do sono brando do menininho.
Guigui não acredita que o homem visitou a lua, tem lobo demais lá, nem mesmo os americanos dançariam com tais lobos.
Chama vovó, chama a bisa, chama a titia e a mamãe, cercado de tantas saias, espia num cantinho de olho a vila dos lobos uivantes e jura não contar carneirinhos nesta noite de lua cheia, porque não há de sobrar um para lhe contar histórias de “urubu não ir”.
Penso que ao crescer esse menininho vai ter uma namorada, e a lua desabalada vai tentar ser companhia e ele peralta, com uns óculos coloridos, Gui vai encarar os lobos de pelos punk e descaradamente vai fazê-los panda, vai fazê-los micos dourados, vai fazê-los tantos palhaçados que um a um em roda declinarão o nome das crianças assustadas que da lua reclamam a morada para o saudoso santo guerreiro matador do dragão.
O rescaldo dos vadios lobos brancos (curtidos no balde de cores de um Guigui gaiato, que pela namorada, encara a lua de frente com as suas quarenta e duas polegadas e em cores, num filtro rapaz, recém-saído da barra das saias e do vulto de seu forte irmão capitão), escaldados, os lobos em fileirinha, com rabos para sempre à míngua ensaiam autos de ninar, cumprindo nova função no céu azulado do menininho Gui: arregimentar carneirinhos e vigiá-los inteirinhos só para o sono crescer e crescer o nano Guigui até surgir o seresteiro das noites enluaradas: Guilherme com a sua amada, iluminados pela tal de lua e toda a sua corja de lobos e santos. (sempre será melhor apenas estar sob lua – e à certa distância - em noite alta)

A BARRIGA DO BICHO PAPAO

A barriga do bicho Papão
Nivea Moraes Marques


Dentro da barriga do bicho Papão
Moram exércitos de formigas
Tampas plásticas e
Bolas de soprar

Não cabem crianças lá!

Dentro da barriga do bicho Papão
Quando a fome nasce
Dá um grito
E ocupa de vazio
Todo o espaço

(Não cabem crianças lá)

Dentro da barriga do bicho Papão
Tem galocha velha
Meia furada
Bico de mamadeira e chupeta gasta

Mas não cabem crianças lá!

Quando vejo um bicho papão bem gordão
Cheio de marra e pronto pra pegar a gente
Penso logo no raio x
Que fiz :

Bagunça cabe
Nariz de palhaço cabe
Regador empenado cabe
Bicicleta com pneu esvaziado cabe
E... não cabem crianças lá!

DUDU

Do Mini-vocabulário infantil de Maria Clara:


Dudu
Nivea Moraes Marques



Amo Brigite e seu jeito de espreguiçar
Puxo seus bigodes e domo seus pelos
Com jeito de menina que descobre
que a vida tem jeito
Ajeito meus cabelos, pretos, lisos, brilhantes
E arrasto Brigite pelos cantos
Brigite, como um tapete de pelos,
Repele esse meu jeito brincante
E quando penso que nenhum mal mais
posso impingir a Brigite
Grito baixinho o seu nome
Nobre chamego
a que empresto a minha última artimanha
Eles dizem: Bri-gi-te! Bri-gi-te! Bri-gi-te!
E eu replicando: Duduû! Duduû! Duduû!
A bichana com nome de bichano aceita o
meu doce chamado
Corre pra meus pés
E eu, delícia das delícias,
aperto aqueles pelos todos e começa a tortura
tudo de novo: Duduû!!!

PIRATARIA

Cara de abóbora
Nivea Moraes Marques


Quando prometeram os piratas
Invadir as terras da minha infância
Meu tio Mi tratou de construir para mim
Uma caveira esculpida numa moranga
Era quase noite
E para ficar mais viva a minha cabeça
Implantou velas acesas nos olhos na boca
No recheio oco da abóbora
Ela abria e fechava a boca
Mas não cantava canções de ninar
A caveira amarela
Invadiu os meus piratas
E a perna de pau e o olho de vidro
Ficaram temerosos
Quem pode com cabeça à luz de velas?
Os piratas invasores olhavam pelas frestas
E coravam
Puxavam seus próprios cabelos...
Na mesma tardinha
Invadiram foi a quitanda
Agora à procura de um outro tesouro.

YMAGUARÉ

Ymaguaré
Nivea Moraes Marques


Existe uma lenda na floresta de que há um deus para cada coisa que vive.

Existe uma lenda na floresta de que o rio vive, de que a flor é bela, e de que a água pertence à mãe d’água.

A água doce tem Iara e a água salgada tem Janaína.

Essas mães têm sempre os cabelos compridos e ambas gostam muito de espelho.


Ymaguaré é o nome do filho dessas águas que se encontram bem no ponto onde o doce é sal e o sal é doce.

O peixe do mar encontra o boto do rio, e eles dançam felizes de se encontrar.

Mas essa mistura de mães, a doce índia e a salgada africana, veio a dar em uma terceira mãe e numa terceira lenda:
Só existe um deus que se chama Deus e só existe uma mãe que se chama Maria.

E que dentro desse Deus e dessa mãe Maria caberiam todos os outros e outras que possivelmente existam.
Às vezes mais, às vezes menos que Deus e Maria.

Ymaguaré criou, por assim dizer, uma nação Portuguesa para a qual depositou-se o sagrado degredo de conjugar e destruir todas as lendas.

Ymaguaré, povo sábio que marca o encontro, pede pra elas, as mães dos povos e dessa nação inundista, venham ajudar criaturas claras a terem e serem mães, pois o que importa na verdade é a acolhida que uma boa mãe tem pra dar e conquistar em cada um filho seu, o seu santo lugar de Mãe.

LA POLONESA

La Polonesa
Nívea Moraes Marques



Minha mãe teve uma cachorrinha


chamada Camponesa


Seu corpo era uma bolinha


Seu olhar de leve altivo


A camponesa seguia de perto


o passo dos donos


e nunca soube dizer adeus


No céu dos cachorros ela


abana seu rabo pra mim


e eu guardo


trancada no meu peito


a lembrança de um dia ter querido


ser criança

MEDO DO ESCURO

Constelação
Nivea Moraes Marques


Minha boca não sabe as rezas
e as promessas
minhas mãos não sabem o que é penitência
e reconciliação
Eu confesso que tenho medo do escuro.
Já aprendi que cardume é o coletivo de peixes
mas ainda não sei de que são feitas as estrelas
que colei no teto do meu quarto...
Minha imitação é como um rebanho
(vão tangendo meus sonhos)
enfim durmo
e ensino ao escuro o que é constelação.

CORSO DE PINHEIRAL

CORSO DE PINHEIRAL
Nivea Moraes Marques



Pelas estreitas ruas de chão batido de Pinheiral passavam em procissão os carros, carroças e carruagens.

À medida que as marchas dos carros iam ficando cada vez mais lentas, melhor a voz das mulheres e dos homens se decodificavam pelos alto-falantes e se ouvia sem cessar o “Abre-alas que eu quero passar”.

Júlia era uma menina pequena, cor-de-bombom de caramelo cariado, seus péizinhos estavam protegidos por pequenas e delicadas sapatilhas e a mãe havia preparado com cuidado os pompons e babados de sua fantasia de bailarina.

Davi era um menino menor ainda, do tipo branco amarelo-envelhecido (barroco), Usava sandálias de Romano e estava abraçado ao pescoço de seu pai.

Ambos olhavam o desfile, quando começaram a achar tão curioso o vestir de cada qual.

Júlia mirou cada pedaço da fantasia de Davi e Davi foi direto aos olhos de Júlia, como eram lindos e negros, tão negros a mel.

Júlia fingia não perceber o interesse de Davi e prestava uma atenção de rabo de olho nas mãozinhas e nos pequenos braços tão apertados ao pescoço do pai. O pai de Davi era um moço lindo, olhos cor-de-amêndoa. A mãe de Júlia era uma verdadeira princesa do Zaire, negra, negra, negra quase marrom.

Os carros não cessavam o passa-passa e a multidão aplaudia uma Senhora de melindrosa com as pernas à mostra. Outra hora, eram as variadas buzinas as vedetes do passeio. E outras ainda eram os palhaços e suas golas e laçarotes enormes. (Graças a Deus já havia palhaços naquele tempo!)

Naquele tempo mamãe disse-lhe assim: “Júlia vá oferecer um pouco das pipocas que acabo de te trazer, veja como o pequeno Romano olha pra cá, deve gostar também de pipocas!”

Com muito receio de machucar aquele encontro de almas infantis, Júlia foi ao encontro dele e disse: “Você quer?”, Davi levemente corado falou: “Papai eu posso aceitar?”, no que seu pai respondeu: “Nada se deve negar a uma bailarina” e sorriu comovido pela cena singular que acabara de presenciar.

Davi, mesmo quase da altura de Júlia, esticou os bracinhos e entregou-lhe umas pipocas na boca, num gesto inesperado, ao que Júlia nem teve como recusar tão meiga oferta, mastigou com bastante força as pipoquinhas que iam fazendo estalinhos nos risos nervosos dos dois. Depois, então ela fez o mesmo com Davi e Davi repetiu o gesto e ela fez a mesma coisa novamente. Desse jeito, os dois curtiram o carnaval de 22 e aquele quase primeiro desfile de carros em alas e alas.

Carnavais como esse nunca mesmo, embora Júlia nunca mais tirasse a sua fantasia de bailarina e Davi nunca mais se esquecesse de como conquistar em sendo conquistado.

Talvez na Praça Onze as histórias fossem as mesmas, mas aquela cor cariada, aqueles olhos quase a mel, aquelas sandálias improvisadas por mãe e as palavras do pai só mesmo em Pinheiral, pontualmente às 19 horas de uma segunda-feira gorda de carnaval.

sábado, 10 de março de 2012

CHINESINHA MODERNA

Chinesinha moderna
Nivea Moraes Marques

Não cabem todo o negro e amêndoa
Dentro dos olhos da chinezinha
Quando ela chora, respingam feito fossem nanquim.

Chocolate, chega a chamuscar o chão
Chama incandescente e intensa
Chafariz dentro dos olhos da chinezinha

Cantata, cânfora, casca de cortiça
Chispa choro chuvinha
Chegança, teatro de novos temas

E a chinesinha chora e ri
Desenha outros contornos pra seus próprios olhos
(sonhando em línguas estranhas)
contém chororô e choramingos,
a tinta pode acabar...

O ANZOL DA PALAVRA

O anzol da palavra (“Cadê o toucinho que tava aqui?”)
Nivea Moraes Marques


A água bebeu o boi
O boi subiu na cerca
A cerca espantou o dia
O dia despencou da escada
A escada suspeitou da esperança
A esperança julgou o tempo
O tempo pediu licença-prêmio
Licença-prêmio não é penico!
O penico mora debaixo da cama
A cama cola nas costas do preguiçoso
Preguiçoso é o colarinho do palhaço
O palhaço nunca vai cuspir marimbondo
Marimbondo roi a paciência do mundo
O mundo não tem fita métrica
A fita métrica não sabe tabuada de três
A tabuada de três é sinônimo de estrada
A estrada corre sentada
Sentada é a pose do Buda
O Buda inventou a barriga
A barriga atrai formiga
A formiga vai de sombrinha pra escola
A escola tem um trato com as férias
As férias constróem castelos de vento
O vento reclama da poeira
A poeira entope as lágrimas
As lágrimas corroem esterco
O esterco lambuza a rosa
A rosa é senhoria do espinho
O espinho não gosta de sangue
O sangue coagula tristeza
A tristeza aduba mangueira
A mangueira serve de balanço
O balanço fabrica o galo
O galo chupa gelo
O gelo gosta do roxo
O roxo não está na bandeira
A bandeira pede mastro
O mastro é parente dos piratas
Os piratas dão de presente a lua
A lua não brinca de pula-carniça
Pula-carniça é antiguidade
A antiguidade sabe das coisas
As coisas se guardam em baús
Os baús inventam ruídos
Os ruídos caçam fantasmas
Os fantasmas falam demais
Demais é verbo sem flexão
A flexão comunga com a diferença
A diferença é igual a existir
Existir fabrica passarinhos
Os passarinhos rabiscam as telhas
As telhas têm medo de altura
A altura foge de edifícios
Os edifícios nunca viram um caranguejo
O caranguejo dança ciranda
A ciranda é comadre de São João
São João prefere o inverno
O inverno caducou na primavera
A primavera arrasta grinalda
A grinalda é o coletivo de noiva
A noiva tem gosto de glacê
O glacê não comemora aniversário
O aniversário é sempre atual
Atual pede carona pro hoje
Hoje perdeu o relógio
O relógio não serve pra nada
Nada está sempre com fome
A fome foge da igualdade
A igualdade tem muitos irmãos
Os irmãos sobem a montanha
A montanha acredita em Deus
Deus não discute com a pressa
A pressa engole a língua
A língua quer ser cantora
A cantora belisca o coração
O coração gosta de ilusão
A ilusão não usa óculos
Os óculos têm fronteira
A fronteira reparte os cabelos no meio
Meio fica entre o começo e o fim
O fim se mete em tudo
Tudo não tem limites
Limites: utilidade das mães
As mães tecem o mar
O mar salgou a água
A água o boi bebeu.

ANJO-ÍNDIO-LEÃO

Anjo-índio-leão
Nivea Moraes Marques

Para meu segundo sobrinho e afilhado Pedro



“Eu queria dar ao menino
umas asinhas de arame e algodão.
Mas ele diz que não pode ser anjo,
Pois todos já sabem que ele é índio e leão.”
Cecília Meireles


Esse indiozinho falta pouco faz um ano
Ele ri de mansinho e
Com as mãozinhas abrindo e fechando
Ora diz tchau, ora diz vem!

É leãozinho da tia
E quase nem sabe chorar
Ruge um pouquinho na hora da fome
E come tudinho
Pra ter força de homem

Meu anjinho se fez rocha
E ampara meus sonhos
Com suas asas no ar

Pedro, Pedrinho
Tem dois dentinhos

Pedro, Pedrinho
é tão gordinho

Indiozinho, leãozinho, anjinho
Cresce bem devagarinho
e deixa pelo avesso a costura de suas fantasias

DOZE MODELOS DE MENINAS

Doze modelos de meninas
Nivea Moraes Marques

Pequeniníssimas guloseimas
Cobertas de açúcar
Coloridas

Juntas, reunidas
para a baderna, a bagunça, a barafunda

Gomos da mesma fruta,
Oscilam á toa
Merengue do bel-prazer

Malote de belezocas
Brincam o carnaval
Transpirando benjoim.

BRASIL MEU CANARINHO

Brasil Meu Canarinho
Nivea Moraes Marques



Para minha primeira sobrinha Maria Clara



Quando eu calava, as tuas estrelas emudeciam.
Quando eu calava as tuas estrelas eu emudecia.
As estrelas costuravam-se à minha boca
E a voz se refletia nos olhos e nos braços de cada estrela
Nunca te falei esse infinito de coisas belas:
Apenas nadava investigando o amor,
que há de nascer no mar e morrer nas águas
Que há de nascer nas águas e morrer no mar

Brasileirinha, canarinho de mim.

BAILARINAS NO VAREJO

Bailarinas no varejo
Nivea Moraes Marques


Para meus queridos bailarinos Ciça e Claudinho
Para todas as bailarinas que dançam comigo e a minha prof. Isabel



Eu sempre quis ser bailarina
Desde cedo eu sabia fazer pliê, demi-pliê
Quase só usava preto e cor-de-rosa
Fita nos cabelos pés esgarçados
Acontece que o coração não entende
das escolhas que a gente faz na vida
Um dia ele começa a crescer
Cresce quase à vontade
O meu não entendeu o meu corpo
Ficou maior do que os meus pés
meus braços, do que os meus cabelos
Coração
(casa de máquina que move os homens)
não podia ser maior que o sonho,
numa bailarina que se preza tudo é proporção.
Aprendi, então, a desenhar seus nomes
E hoje coleciono
(para as filhas que ainda não tive)
o saldo das bailarinas que não fui.

RETRATO DE LAURA

Retrato de Laura
Nivea Moraes Marques

Para Laura Arbex


Laura vive numa lua de leite
louça fria
lance do logus
luta e letra calçada de luva
Lastro de louca no lince da lupa

No lápis de Laura, luto da preguiça,
faz nascer lontras, litros, lustres
nesta lavoura lúdica, sua lânguida língua
é limite do laço: lume.

Laura só sonha em latim,
linfática lama
lodosa linhagem
lufa-lufa do som

Lupus - legi - lata
lundu de vira-lata
lombo lusíada
lote de lombrigueiro
lona do logro

Laura levada, lança de pontas, seta da língua
litoral das largas chuvas
leito do lanho no joelho
louvai lipidicamente
suas lágrimas de menina